parte 2 de 4 da tradução de um texto originalmente posto a
circular entre pessoas que marchavam com o contingente ACT UP da
marcha do orgulho gay de Nova Iorque, em Junho de 1990. autoria(s)
anónima(s). texto original aqui
& mais sobre a ACT UP aqui.
2. Estou Zangado
As irmãs fortes disseram aos irmãos que havia duas
coisas importantes a manter em mente quanto às revoluções
vindouras. A primeira é que vamos levar uma sova. A segunda é que
vamos ganhar.
Estou zangado. Zangado por ser condenado à morte por
estranhos que dizem “Tu mereces morrer” e “A SIDA é a cura”.
A fúria explode quando uma mulher Republicana que usa milhares de
dólares em roupa e jóias pavoneia-se ao pé das linhas policiais
abanando a cabeça, rindo-se e abanando-nos o dedo como se fossemos
crianças recalcitrantes que fazem exigências absurdas e que fazem
birra quando essas exigências não têm resposta. Zangado quando o
Jopseh agoniza por causa dos 8,000 dólares por ano para AZTi
que lhe pode permitir viver um pouco mais e que o deixa mais doente
do que a própria doença com a qual foi diagnosticado. Zangado
quando ouço um homem dizer-me que depois de mudar o seu testamento
cinco vezes, está a ficar sem pessoas às quais deixar as suas
coisas. Todos os seus melhores amigos estão mortos.
Zangado quando
me vejo num mar de painéis de quiltii,
ou quando vou a uma marcha de vela ou a mais um funeral. Não vou
marchar silenciosamente com uma merda duma vela e quero pegar naquela
porra daquele quilt e embrulhar-me nele e rasgá-lo furiosamente e
arrancar o meu cabelo e amaldiçoar todas as religiões alguma vez
criadas. Recuso-me a aceitar uma criação que corta a existência
das pessoas na terceira década das suas vidas. É cruel e hediondo e
sem-sentido e tudo o que tenho em mim vira-se contra o absurdo e eu
ergo a minha cara às nuvens e um riso esfarrapado que soa mais
demónico do que feliz explode da minha garganta e caiem-me lágrimas
cara abaixo e se esta doença não me matar, sou capaz de morrer de
frustração.
Os meus pés percorrem as ruas e as mãos do Peter
estão acorrentadas à mesa de recepção de uma empresa farmacêutica
enquanto a receptionista olha para ele horrorizada e o corpo do Eric
está a apodrecer num cemitério em Brooklyn e eu nunca mais vou
ouvir a flauta dele a ressoar pelas paredes da casa de encontro. E
vejo as pessoas idosas no parque da praça Tompkins, encolhidas nos
seus longos casacos de lã em Junho, para afastar o frio que sentem e
para se agarrarem ao pouco que a vida ainda tenha para lhes oferecer
e penso ah, elas percebem. E lembro-me das pessoas que se despem e se
põem à frente de um espelho todas as noites antes de se deitarem, à
procura de uma qualquer marca no corpo que talvez não lá estivesse
ontem. Uma marca de que esta praga as visitou. E fico zangado quando
os jornais nos chamam de “vítimas” e soam o alarme de que em
breve isto se pode espalhar à “população em geral”. E quero
gritar, “Mas quem sou eu?” E quero gritar ao hospital de Nova
Iorque com os seus sacos de plástico amarelos marcados “linho de
isolamento”, “ropa infecciosa”, e os que lá trabalham
contornam a cama com as suas luvas de latéx e as suas máscaras
cirúrgicas como se o doente fosse subitamente saltar da cama e
regá-los em sangue e sémen e passar-lhes a praga a eles também. E
estou zangado com as pessoas hetero que ficam sentadas,
arrogantemente embrulhadas no seu casaco protector de monogamia e
heterossexualidade, confiantes que esta doença não tem nada a ver
com elas porque só lhes acontece a “eles”. E os rapazes
adolescentes que quando reparam no meu crachá a dizer “Silêncio =
Morte” começam cânticos de “Os paneleiros vão morrer” e eu
pergunto-me, quem é que lhes ensinou isto? Embrulhado em fúria e
medo, permaneço silencioso enquanto o meu crachá goza comigo a cada
passo do caminho. E a raiva que sinto quando um programa de televisão
sobre o quilt faz o perfil dos mortos e a lista começa com um bebé,
uma adolescente que recebeu uma transfusão de sangue, um padre
Baptista idoso e a sua mulher e quando finalmente mostram um homem
gay, ele é descrito como alguém que conscientemente infectou
prostitutos adolescentes com o vírus. Que mais esperar de um
paneleiro? Estou zangado.
3. [Sem-título]
Desde o início dos tempos, o mundo tem-se inspirado no trabalho
de artistas queer. Em troca, tem havido sofrimento, tem havido dor,
tem havido violência. Ao longo da história, a sociedade regateou
uma pechincha com *s seus cidadã*s queer: devem seguir carreiras
criativas, se o fizerem discretamente. Através das artes, *s queers
são productivo*s, lucrativ*s, divertid*s e talvez até inspirador*s.
Eis os biprodutos claros e úteis do que é de resto um comportamento
anti-social. Em círculos cultivados, os queers podem coexistir com
uma elite de poder que de resto os rejeita.
Na vanguarda da mais recente campanha de ataque a*s artistas queer
está Jessie Helmsiii,
árbitro de tudo o que é decente, moral, cristão e americanoiv.
Para Helms, a arte queer é muito simplesmente uma ameaça ao mundo.
Na sua imaginação, a cultura heterossexual é demasiado frágil
para suportar a admissão da diversidade sexual e humana. Muito
simplesmente, a estrutura de poder no mundo judaico-cristão fez da
procriação o seu pilar. As famílias terem filh*s garante
consumidor*s para os productos da nação e a mão-de-obra que os
produza, para além de um sistema familiar para cuidar d*s doentes,
reduzindo as despesas dos sistemas públicos de saúde. Todo o
comportamento não-procriativo é considerado uma ameaça, da
homossexualidade ao planeamento familiar ao aborto enquanto opção.
Segundo a direita religiosa, não chega promover consistentemente a
procriação e a heterossexualidade... é também necessário
destruir qualquer alternativa. Não é atrás da arte que o Helms
anda... é atrás das nossas vidas! A arte é o último espaço
seguro para que as lésbicas e os homens gays prosperem. Helms sabe
isto, e desenvolveu um programa para purgar *s queers da única arena
em que lhes foi permitido contribuir para a nossa cultura
colectiva.
Helms defende um mundo livre de diversidade ou dissidência. É
fácil imaginar porque é que isso pode parecer mais confortável
àqueles que têm controlo sobre tal mundo. Também é fácil
imaginar uma paisagem americana achatada por esse poder. Helms devia
simplesmente pedir aquilo pelo qual insinua: arte patrocinada pelo
estado, arte do totalitarianismo, arte que fala apenas em termos
cristãos, arte que apoia os objectivos daqueles que estão no poder,
arte que combina com os sofás do escritório oval da Casa Branca.
Pede o que queres, Jesse, para que homens e mulheres
consciencializad*s possam mobilizar-se contra isso, como o fazemos
contra as violações de direitos humanos noutros países e para que
lutemos para libertar os dissidentes do nosso próprio país.
4. Se És Queer, Grita-o!
*s queers estão sob cerco.
*s queers estão a ser atacad*s em todas as frentes e temo que
estejamos na boa com isso.
Em 1969, *s queers foram atacad*. Não foi na boa. Lutaram de
volta, tomaram as ruas.
Gritaram.
Em 1990, houve 50 ataques a queers só no mês de Maio. Ataques
violentos. 3,720 homens, mulheres e crianças morreram de SIDA no
mesmo mês, mortes causadas por uma causa mais violenta – a inacção
do governo, fundamentada na homofobia crescente da nossa sociedade.
Isto é homofobia institucionalizada, talvez ainda mais perigosa para
a existência d*s queers, porque os atacantes não têm caras.
Permitimos estes ataques através da nossa contínua falta de acção
contra eles. A SIDA afectou o mundo hetero e agora estão a
culpar-nos pela SIDA e a usá-la como forma de justificar a sua
violência contra nós. Já não nos querem mais. Antes bater-nos,
violar-nos e matar-nos do que continuar a viver connosco. O que é
que é preciso para que isto não seja na boa? Sente alguma raiva. Se
a raiva não te empodera, experimenta o medo. Se isso não funcionar,
experimenta o pânico.
Grita-o!
Sê orgulhos*. Faz o que for preciso para te arrancares do teu
estado habitual de tolerância. Sê livre. Grita.
Em 1969, *s queers contra-atacaram. Em 1990, *s queers dizem “na
boa”.
No ano que vem, estaremos cá?
5. [Sem-título]
Odeio o Jesse Helms. Odeio tanto o Jesse Helms que celebraria se
ele caísse morto. Se alguém o matasse, considerava isso culpa dele.
Também odeio o Ronald Reagan, porque ele exterminou o meu povo
durante oito anos. Mas para ser honest*, eu odeio-o ainda mais por
eulogizar o Ryan White sem antes admitir a sua culpa, sem implorar
por perdão pela morte do Ryan e pela morte de dezenas de milhares de
outras pessoas com SIDA – a maioria delas, queers. Odeio-o por
ridicularizar o nosso luto.
Odeio a merda do Papa, odeio a merda do cardeal John O'Connorv
e odeio a puta da igreja católica inteira. O mesmo aplica-se ao
exército, e especialmente aos funcionários da aplicação da lei do
nosso país – a bófia – cambada de sadistas com a sanção do
estado para brutalizar travestis nas ruas, prostitut*s e prisioneir*s
queer. Também odeio as organizações médicas e de saúde mental,
particularmente o psiquiatra que me convenceu a não ter sexo com
homens durante três anos até que nós conseguíssemos (ou seja, ele
conseguisse) fazer de mim bissexual em vez de bicha. Também odeio a
educação, pela sua parte em conduzir milhares de queers ao suicídio
todos os anos. Odeio o mundo artístico “responsável”, e a
indústria do entretenimento, e os media mainstream, especialmente o
New York Times. De facto, odeio todos os sectores do sistema
hetero neste país – os piores dos quais activamente desejam ver
todos os queers mort*s, os melhores dos quais nunca correm riscos
para nos manter viv*s.
Odeio pessoas hetero que pensam que têm algo inteligente a dizer
quanto a tirar gente do armário. Odeio pessoas hetero que pensam que
estórias sobre si próprias são “universais” mas que estórias
sobre nós são só estórias sobre a homossexualidade. Odeio músic*s
heteros que constroem as suas carreiras à pala de pessoas queer,
depois atacam-nos, depois mostram-se magoad*s quando nos zangamos e
depois negam terem errado connosco em vez de pedirem desculpa. Odeio
pessoas hetero que dizem, “Não vejo porque sentes a necessidade de
usar esses crachás e t-shirts. Eu não ando por aí a dizer ao mundo
inteiro que sou hetero”.
Odeio que em doze anos de ensino público nunca me tenha sido
ensinado nada sobre pessoas queer. Odeio que tenha crescido a pensar
que era o único queer no mundo, e odeio ainda mais o facto de a
maior parte d*s miúd*s queer ainda crescerem dessa forma. Odeio que
tenha sido atormentado pel*s outr*s miúd*s por ser paneleiro, mas
mais ainda que me tenha sido ensinado que sentisse vergonha por ser o
objecto da sua crueldade, ensinado a sentir que a culpa era minha.
Odeio que o Supremo Tribunal deste país diga que não faz mal
criminalizar-me por causa de como faço amor. Odeio que tanta gente
hetero esteja preocupada com a porra da minha vida sexual. Odeio que
tantas pessoas hetero retorcidas se tornem pais e mães, enquanto eu
tenho de lutar como tudo para me ser permitido ser pai. Odeio
heteros.
-- Queer Nation, 1990
_________________________________________________________________________________
i Azt
= azitodimina ou zidovudina, fármaco antiviral usado no tratamento
de infecções com HIV, acompanhado por outros antiretrovirais.
ii Referência
ao AIDS Memorial Quilt, um projecto colaborativo de memorialização
de vítimas da SIDA, criado nos E.U.A. em 1987:
http://www.aidsquilt.org/about
(acedido a 18 de Outubro de 2013).
iii Um
senador do Partido Republicano no Norte da Califórnia, aliado de
Ronald Reagan nos anos 70. Figura pública notoriamente vocal no seu
conservadorismo social e cultural. Afirmava publicamente que a SIDA
era punição divina por actos de sodomia e procurou impedir o
financiamento federal de pesquisa sobre a SIDA e HIV. Quando o Fundo
Nacional das Artes financiou o trabalho do fotógrafo gay Robert
Mapplethorpe, procurou cortar com o financiamento do mesmo.
iv “Amerikan”
no original; expressão usada para indexar uma América corrupta,
conservadora, capitalista e imperialista.
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