26.10.13

manifesto queer nation [parte ii]

parte 2 de 4 da tradução de um texto originalmente posto a circular entre pessoas que marchavam com o contingente ACT UP da marcha do orgulho gay de Nova Iorque, em Junho de 1990. autoria(s) anónima(s). texto original aqui & mais sobre a ACT UP aqui.




2. Estou Zangado

As irmãs fortes disseram aos irmãos que havia duas coisas importantes a manter em mente quanto às revoluções vindouras. A primeira é que vamos levar uma sova. A segunda é que vamos ganhar.

Estou zangado. Zangado por ser condenado à morte por estranhos que dizem “Tu mereces morrer” e “A SIDA é a cura”. A fúria explode quando uma mulher Republicana que usa milhares de dólares em roupa e jóias pavoneia-se ao pé das linhas policiais abanando a cabeça, rindo-se e abanando-nos o dedo como se fossemos crianças recalcitrantes que fazem exigências absurdas e que fazem birra quando essas exigências não têm resposta. Zangado quando o Jopseh agoniza por causa dos 8,000 dólares por ano para AZTi que lhe pode permitir viver um pouco mais e que o deixa mais doente do que a própria doença com a qual foi diagnosticado. Zangado quando ouço um homem dizer-me que depois de mudar o seu testamento cinco vezes, está a ficar sem pessoas às quais deixar as suas coisas. Todos os seus melhores amigos estão mortos.

Zangado quando me vejo num mar de painéis de quiltii, ou quando vou a uma marcha de vela ou a mais um funeral. Não vou marchar silenciosamente com uma merda duma vela e quero pegar naquela porra daquele quilt e embrulhar-me nele e rasgá-lo furiosamente e arrancar o meu cabelo e amaldiçoar todas as religiões alguma vez criadas. Recuso-me a aceitar uma criação que corta a existência das pessoas na terceira década das suas vidas. É cruel e hediondo e sem-sentido e tudo o que tenho em mim vira-se contra o absurdo e eu ergo a minha cara às nuvens e um riso esfarrapado que soa mais demónico do que feliz explode da minha garganta e caiem-me lágrimas cara abaixo e se esta doença não me matar, sou capaz de morrer de frustração.

Os meus pés percorrem as ruas e as mãos do Peter estão acorrentadas à mesa de recepção de uma empresa farmacêutica enquanto a receptionista olha para ele horrorizada e o corpo do Eric está a apodrecer num cemitério em Brooklyn e eu nunca mais vou ouvir a flauta dele a ressoar pelas paredes da casa de encontro. E vejo as pessoas idosas no parque da praça Tompkins, encolhidas nos seus longos casacos de lã em Junho, para afastar o frio que sentem e para se agarrarem ao pouco que a vida ainda tenha para lhes oferecer e penso ah, elas percebem. E lembro-me das pessoas que se despem e se põem à frente de um espelho todas as noites antes de se deitarem, à procura de uma qualquer marca no corpo que talvez não lá estivesse ontem. Uma marca de que esta praga as visitou. E fico zangado quando os jornais nos chamam de “vítimas” e soam o alarme de que em breve isto se pode espalhar à “população em geral”. E quero gritar, “Mas quem sou eu?” E quero gritar ao hospital de Nova Iorque com os seus sacos de plástico amarelos marcados “linho de isolamento”, “ropa infecciosa”, e os que lá trabalham contornam a cama com as suas luvas de latéx e as suas máscaras cirúrgicas como se o doente fosse subitamente saltar da cama e regá-los em sangue e sémen e passar-lhes a praga a eles também. E estou zangado com as pessoas hetero que ficam sentadas, arrogantemente embrulhadas no seu casaco protector de monogamia e heterossexualidade, confiantes que esta doença não tem nada a ver com elas porque só lhes acontece a “eles”. E os rapazes adolescentes que quando reparam no meu crachá a dizer “Silêncio = Morte” começam cânticos de “Os paneleiros vão morrer” e eu pergunto-me, quem é que lhes ensinou isto? Embrulhado em fúria e medo, permaneço silencioso enquanto o meu crachá goza comigo a cada passo do caminho. E a raiva que sinto quando um programa de televisão sobre o quilt faz o perfil dos mortos e a lista começa com um bebé, uma adolescente que recebeu uma transfusão de sangue, um padre Baptista idoso e a sua mulher e quando finalmente mostram um homem gay, ele é descrito como alguém que conscientemente infectou prostitutos adolescentes com o vírus. Que mais esperar de um paneleiro? Estou zangado.

3. [Sem-título]

Desde o início dos tempos, o mundo tem-se inspirado no trabalho de artistas queer. Em troca, tem havido sofrimento, tem havido dor, tem havido violência. Ao longo da história, a sociedade regateou uma pechincha com *s seus cidadã*s queer: devem seguir carreiras criativas, se o fizerem discretamente. Através das artes, *s queers são productivo*s, lucrativ*s, divertid*s e talvez até inspirador*s. Eis os biprodutos claros e úteis do que é de resto um comportamento anti-social. Em círculos cultivados, os queers podem coexistir com uma elite de poder que de resto os rejeita.

Na vanguarda da mais recente campanha de ataque a*s artistas queer está Jessie Helmsiii, árbitro de tudo o que é decente, moral, cristão e americanoiv. Para Helms, a arte queer é muito simplesmente uma ameaça ao mundo. Na sua imaginação, a cultura heterossexual é demasiado frágil para suportar a admissão da diversidade sexual e humana. Muito simplesmente, a estrutura de poder no mundo judaico-cristão fez da procriação o seu pilar. As famílias terem filh*s garante consumidor*s para os productos da nação e a mão-de-obra que os produza, para além de um sistema familiar para cuidar d*s doentes, reduzindo as despesas dos sistemas públicos de saúde. Todo o comportamento não-procriativo é considerado uma ameaça, da homossexualidade ao planeamento familiar ao aborto enquanto opção. Segundo a direita religiosa, não chega promover consistentemente a procriação e a heterossexualidade... é também necessário destruir qualquer alternativa. Não é atrás da arte que o Helms anda... é atrás das nossas vidas! A arte é o último espaço seguro para que as lésbicas e os homens gays prosperem. Helms sabe isto, e desenvolveu um programa para purgar *s queers da única arena em que lhes foi permitido contribuir para a nossa cultura colectiva.

Helms defende um mundo livre de diversidade ou dissidência. É fácil imaginar porque é que isso pode parecer mais confortável àqueles que têm controlo sobre tal mundo. Também é fácil imaginar uma paisagem americana achatada por esse poder. Helms devia simplesmente pedir aquilo pelo qual insinua: arte patrocinada pelo estado, arte do totalitarianismo, arte que fala apenas em termos cristãos, arte que apoia os objectivos daqueles que estão no poder, arte que combina com os sofás do escritório oval da Casa Branca. Pede o que queres, Jesse, para que homens e mulheres consciencializad*s possam mobilizar-se contra isso, como o fazemos contra as violações de direitos humanos noutros países e para que lutemos para libertar os dissidentes do nosso próprio país.


4. Se És Queer, Grita-o!

*s queers estão sob cerco.

*s queers estão a ser atacad*s em todas as frentes e temo que estejamos na boa com isso.
Em 1969, *s queers foram atacad*. Não foi na boa. Lutaram de volta, tomaram as ruas.

Gritaram.

Em 1990, houve 50 ataques a queers só no mês de Maio. Ataques violentos. 3,720 homens, mulheres e crianças morreram de SIDA no mesmo mês, mortes causadas por uma causa mais violenta – a inacção do governo, fundamentada na homofobia crescente da nossa sociedade. Isto é homofobia institucionalizada, talvez ainda mais perigosa para a existência d*s queers, porque os atacantes não têm caras. Permitimos estes ataques através da nossa contínua falta de acção contra eles. A SIDA afectou o mundo hetero e agora estão a culpar-nos pela SIDA e a usá-la como forma de justificar a sua violência contra nós. Já não nos querem mais. Antes bater-nos, violar-nos e matar-nos do que continuar a viver connosco. O que é que é preciso para que isto não seja na boa? Sente alguma raiva. Se a raiva não te empodera, experimenta o medo. Se isso não funcionar, experimenta o pânico.

Grita-o!

Sê orgulhos*. Faz o que for preciso para te arrancares do teu estado habitual de tolerância. Sê livre. Grita.

Em 1969, *s queers contra-atacaram. Em 1990, *s queers dizem “na boa”.

No ano que vem, estaremos cá?


5. [Sem-título] 

Odeio o Jesse Helms. Odeio tanto o Jesse Helms que celebraria se ele caísse morto. Se alguém o matasse, considerava isso culpa dele.

Também odeio o Ronald Reagan, porque ele exterminou o meu povo durante oito anos. Mas para ser honest*, eu odeio-o ainda mais por eulogizar o Ryan White sem antes admitir a sua culpa, sem implorar por perdão pela morte do Ryan e pela morte de dezenas de milhares de outras pessoas com SIDA – a maioria delas, queers. Odeio-o por ridicularizar o nosso luto.

Odeio a merda do Papa, odeio a merda do cardeal John O'Connorv e odeio a puta da igreja católica inteira. O mesmo aplica-se ao exército, e especialmente aos funcionários da aplicação da lei do nosso país – a bófia – cambada de sadistas com a sanção do estado para brutalizar travestis nas ruas, prostitut*s e prisioneir*s queer. Também odeio as organizações médicas e de saúde mental, particularmente o psiquiatra que me convenceu a não ter sexo com homens durante três anos até que nós conseguíssemos (ou seja, ele conseguisse) fazer de mim bissexual em vez de bicha. Também odeio a educação, pela sua parte em conduzir milhares de queers ao suicídio todos os anos. Odeio o mundo artístico “responsável”, e a indústria do entretenimento, e os media mainstream, especialmente o New York Times. De facto, odeio todos os sectores do sistema hetero neste país – os piores dos quais activamente desejam ver todos os queers mort*s, os melhores dos quais nunca correm riscos para nos manter viv*s.

Odeio pessoas hetero que pensam que têm algo inteligente a dizer quanto a tirar gente do armário. Odeio pessoas hetero que pensam que estórias sobre si próprias são “universais” mas que estórias sobre nós são só estórias sobre a homossexualidade. Odeio músic*s heteros que constroem as suas carreiras à pala de pessoas queer, depois atacam-nos, depois mostram-se magoad*s quando nos zangamos e depois negam terem errado connosco em vez de pedirem desculpa. Odeio pessoas hetero que dizem, “Não vejo porque sentes a necessidade de usar esses crachás e t-shirts. Eu não ando por aí a dizer ao mundo inteiro que sou hetero”.

Odeio que em doze anos de ensino público nunca me tenha sido ensinado nada sobre pessoas queer. Odeio que tenha crescido a pensar que era o único queer no mundo, e odeio ainda mais o facto de a maior parte d*s miúd*s queer ainda crescerem dessa forma. Odeio que tenha sido atormentado pel*s outr*s miúd*s por ser paneleiro, mas mais ainda que me tenha sido ensinado que sentisse vergonha por ser o objecto da sua crueldade, ensinado a sentir que a culpa era minha. Odeio que o Supremo Tribunal deste país diga que não faz mal criminalizar-me por causa de como faço amor. Odeio que tanta gente hetero esteja preocupada com a porra da minha vida sexual. Odeio que tantas pessoas hetero retorcidas se tornem pais e mães, enquanto eu tenho de lutar como tudo para me ser permitido ser pai. Odeio heteros.


-- Queer Nation, 1990

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i Azt = azitodimina ou zidovudina, fármaco antiviral usado no tratamento de infecções com HIV, acompanhado por outros antiretrovirais.
ii Referência ao AIDS Memorial Quilt, um projecto colaborativo de memorialização de vítimas da SIDA, criado nos E.U.A. em 1987: http://www.aidsquilt.org/about (acedido a 18 de Outubro de 2013).
iii Um senador do Partido Republicano no Norte da Califórnia, aliado de Ronald Reagan nos anos 70. Figura pública notoriamente vocal no seu conservadorismo social e cultural. Afirmava publicamente que a SIDA era punição divina por actos de sodomia e procurou impedir o financiamento federal de pesquisa sobre a SIDA e HIV. Quando o Fundo Nacional das Artes financiou o trabalho do fotógrafo gay Robert Mapplethorpe, procurou cortar com o financiamento do mesmo.
iv “Amerikan” no original; expressão usada para indexar uma América corrupta, conservadora, capitalista e imperialista.
v Arcebispo de Nova Iorque entre 1984 e 2000.






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