28.10.13

entrevista: preciado & butler [parte ii]

entrevista a beatriz preciado & judith butler. [parte 2]: a micro-revolução // oikos & ecologias // putas & cadelas // machos dominantes // categorias actuantes // homens grávidos // técnicas & disciplinas // “orgãos tecno-vivos” // a pílula




segunda parte: a utopia “testo yonqui”

O teu livro, Testo Yonqui, é uma utopia libertadora dos géneros e das sexualidades, e também do resultado nihilista de uma época desastrosa para a ecologia. Como pode no entanto a revolução ser realizável hoje em dia?

Beatriz Preciado: Não concebo a revolução sob a forma viril da luta, da transformação heróica. Para mim, a revolução é o que está no domínio do possível, unicamente nos micro-actos. Esta forma de micro-revolução é possível. Depois disso, a pergunta final é como sobreviver no mundo de guerra total no qual vivemos. Precisamos de uma nova política de experimentação e não unicamente esta de representação. Eu milito por uma “Propaganda for Queer Fucking”. Esta micro-revolução dá-se nos corpos, na experimentação, no sexo, no prazer, no consumo de drogas. Hoje em dia, depois de Judith Butler e Donna Haraway, deve pensar-se de nova forma na noção do oikos, da casa, que é o corpo, o corpo mundial e da terra; é por isso que precisamos de um novo feminismo. E é verdade que o meu livro é também, talvez, um luto pelo planeta, porque ecologicamente, o estado das coisas é muito alarmante.


Em Testo Yonqui, as mulheres são chamadas de “putas”, “cadelas”. Não estarás a agir um pouco como a “machotransfufa”?

Beatriz Preciado: Quando digo “puta” ou “cadela” não falo de modo algum de todas as mulheres, mas sim de algumas raparigas com as quais fodi. E foram elas que me ensinaram a chamá-las isso. Como podes imaginar, quando chamo a Virginie Despentes a minha “cadela”, isso é porque ela está totalmente de acordo... Quando uma mulher fala da sexualidade de forma crua, ela é vista como masculina. Aqui, não se trata para mim de uma figura retórica, é isso sim uma forma de ocupar o espaço público, e já que te está totalmente proibído escrever dessa forma quando és mulher, quando te reaproprias destes códigos na linguagem, estás a gerar uma violência, e eu, eu reinvidico essa linguagem! E depois, as mulheres das quais falo tomam o insulto nas suas próprias mãos numa lógica de empoderamento, isso que a Judith descreve como o deslocar da injúria que altera o sujeito da enunciação, que já não é mais uma vítima. Por isso prefiro “cadela” a “vítima” para designar as mulheres. A Judith mostra bem que as noções políticas com as quais trabalhamos vêm do discurso político e jurídico; devemos trabalhar continuamente com noções que são ferramentas de normalização; esta tensão está sempre presente. Tu não podes fazer uma política completamente pura, há sempre um momento em que podes ser lido de forma diferente. O que acontece quando uma mulher se apropria dos códigos da masculinidade? Gostaria que todos os verdadeiros machos viessem workshops de drag king, fodessem com as mulheres com as quais eu fodo, viessem aos cursos da Judith: já não seriam mais machos.


Judith, que pensas tu destes termos?

Judith Butler: Muita gente aprisiona-se a si própria em todas estas categorias de butch, femme, lipstick, macho... Para quê? Elas continuam a actuar sobre nós constantemente, mas a pergunta interessante seria ver como actuamos com elas de uma maneira que não fizesse de nós nem vítimas, nem aprisionadas. Aposto que a Beatriz e eu temos oferecido um novo destino sexual a todas as feministas que desejam uma relação sexual com o macho dominante, mas que não suportam a subordinação social aos homens. O importante é não deixar os homens acreditarem que possuem plenamente a masculinidade. Mas se continua a ser pertinente falar em dominação masculina, o que é problemático é quando se pensa que a dominação é o que caracteriza a masculinidade. Um macho, no estereótipo, é qualquer pessoa que seja incapaz de se confrontar com a sua própria femininidade.


Falemos da actualidade. Thomas Beatie, um transexual americano “Female to Male”, deu à luz uma bebé, este Verão. A sua gravidez foi apresentada pelos media como a do “primeiro homem grávido”. Thomas Beatie nasceu como rapariga. No seu processo de mudança de sexo, tomou testosterona e realizou uma mastectomia. Eles queriam um rapaz, ele e a sua companheira. No entanto, ela tinha realizado uma histerectomía e não podia engravidar. Thomas, por sua vez, teve sempre o seu útero de origem, e por isso decidiu ter o bebé. Como lêem esta gravidez na era da reprodução cada vez mais biotecnológica?

Judith Butler: Para ficar grávida, devo ter certas funções reproductivas operacionais, mas também certas técnicas. Não basta ter um aparelho reproductivo biologicamente feminino. A reprodução pode ser o resultado de uma relação heterossexual, de uma inseminação ou de uma doação de gâmetas. Algumas mulheres têm as funções reprodutoras, mas não são capazes de ficar grávidas sem uma intervenção técnica. Há sempre técnica, em todo o lado; não há relação sexual hetero ou homo sem techné, a pornografia é uma técnica. A outra é uma técnica: utiliza-me, faz de mim o teu instrumento de prazer, é isto o que é uma relação sexual... Caso contrário, nunca cederíamos! (Risos.)

Beatriz Preciado: Não é o primeiro transexual grávido. Matt Rice, um FTM americano, teve uma filha mas não o mediatizou. O que é interessante é a publicidade em torno desta maternidade. Foram de certo modo os media quem tornou possível a reprodução de Beatie. Se conseguiu ficar “grávido”, é porque decidiu rejeitar a ablação dos ovários que acompanha o protocolo da mudança de sexo. Porque é necessário, para que a heterossexualidade continue a apresentar-se como o quadro natural no qual ocorre a gravidez, tornar infértil o sujeito ou o corpo trassexual. Beatie prova que o corpo é um campo de multiplicidade aberto à transformação; o seu corpo não é nem masculino nem feminino, é um campo de implantação técnica no qual podem acontecer múltiplas coisas. Esta complexidade de técnicas aqui ligadas à reprodução mostra que os nossos corpos são, no final de contas, órgãos tecno-vivos e não umas matérias-primas ou orgãos puramente biológicos, independentes da linguagem, das metáforas, dos discursos. Há já muito tempo: no mundo industrializado, na era da pílula, da foda hetero programada por Hollywood e pela pornografia dominante, nenhuma gravidez é natural. No final dos anos 60, havia cerca de dez milhões de consumidoras da pílula; era a primeira vez que um medicamento era prescrito sem que houvesse uma doença, e esta prescrição significa que o corpo feminino é disciplinado para ser maternal. Thomas Beatie é denunciado como anti-natural, mas não foi mais que uma possibilidade entre milhares de casos assistidos pela técnica, e o risco é de que isto se torne cada vez mais frequente.


[parte 3]: “cidadãos respeitáveis” // o cárcere // língua, pensamento, poesia // técnicas de resistência // glossário

última parte: as técnicas do sujeito

Outro ponto muito importante da actualidade americana: na Califórnia, o casamento acaba de ser legalmente aberto aos gays e às lésbicas. O que pensam disto?

Judith Butler: É uma boa notícia, a instituição do casamento devia existir para todos, independentemente da orientação sexual. É só um problema de igualdade no quadro liberal e do ponto de vista dos direitos individuais. Mas não é suficiente. Não sei porque é que a instituição do casamento deve interessar apenas a duas pessoas. E é preciso não esquecer que a instituição do casamento controla outros direitos (a nacionalidade, o direito sobre a propriedade, a visita ao/à teu/tua parceir@ no hospital), e por isso, é preocupante. O movimento pró-casamento nasceu como resposta à crise da SIDA, sendo o seu objectivo transformar os homossexuais em cidadãos respeitáveis. Mas também é muito importante separar a possibilidade de contratualizar uma união – a possibilidade de nos casarmos – da parentalidade. O que me perturba é que o movimento gay tornou-se muito conservador, centrado nos direitos individuais e na propriedade privada. E isto incomoda-me. A minha namorada, que é marxista, também me avisou logo: se eu me casar com ela, ela pedirá o divórcio!


Mais recentemente, trabalhaste sobre a guerra, a tortura em Guantánamo e sobre o que define o humano nesse contexto. Se sou torturada numa prisão, por exemplo, a minha consciência pode ainda assim preservar-se. Podemos dizer que isso é o que resta de mim?

Judith Butler: Imaginemos que estou na prisão, isolada, numa posição que vá contra a minha vontade. Queremos saber se há algo de intocável no ser humano, algo que possa escapar a este poder coercivo que faz com que eu não seja livre. A pergunta será acima, de tudo: quais são os recursos do sujeito que permitem resistir a uma dominação total? Na filosofia, tradicionalmente, pensa-se que só as técnicas de resistência do sujeito lhe pertencem ou estão “nele”. Isto é uma suposição metafísica e é um obstáculo ao pensar o problema da resistência. Talvez eu seja capaz de resistir pelos recursos linguísticos que me foram transmitidos. Ou por outras palavras, a língua, o pensamento, a poesia são recursos que me formam, que me estruturam, e sem estes recursos culturais, eu não conseguiria mobilizar nenhuma dessas técnicas de resistência para sobreviver. A pergunta será afinal: é um Eu o que resiste ou trata-se de um agenciamento de recursos através do qual passa a existir uma resistência? Alguns prisioneiros de Guantánamo escreveram poemas para resistir. Quando se lêem os seus poemas, vemos os traços da sua cultura poética que reuniram para se mobilizarem contra o poder estatal. A pergunta fundamental será então: como é que o agenciamento das técnicas do sujeito possibilita a sobrevivência? Não peguemos no problema perguntando-nos que liberdade resta ao sujeito, mas antes, e mais correctamente, como é que a resistência é possível? Não se pode separar os sujeitos das técnicas que os deixam sobreviver; se lhes tiras estas técnicas, não há mais sobrevivência. A verdadeira pergunta é: sob que condições pode um Eu falar?


as palavras de preciado

Capitalismo farmacopornográfico: o novo regime económico planetário baseia-se no consumo da pornografia, de substâncias químicas de todo o tipo e de serviços sexuais. O objectivo final do trabalhador é ter o máximo de orgasmos possível.

Micropolíticas queer: designa as novas estratégias de resistência para desconstruir o mundo baseado na heterossexualidade dominante. Elas consistem em experimentar, sobre * própri* e com * outr*, o género ou o corpo que se deseja, tomando hormonas ou drogas, ou travestindo-se.

Potentia gaudendi: capacidade de um corpo de se vir, mas que determina também a sua capacidade de mudar o mundo. É também a mão-de-obra do capitalismo farmacopornográfico.

Tecno-género: a medicina está na origem do género. Quem o criou? Nos anos 1940, a medicina decidiu do género dos bebés interssexuais (“hermafroditas”); segue-se que de certa forma, ela produz tecnica e medicamente uma diferença sexual à qual não restará a partir de então nada de natural.

Testosterona: hormona masculina que a autora administrou no seu próprio corpo, na forma de um gel.

Virginologia: doutrina que celebra a perfeição metafísica de Virginie Despentes, na medida em que ela é a mais pornográfica e a mais feminista das mulheres.

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-- Revista Têtu, nº 138 (Nov. 2008)

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