3.11.13

glossário

olá,

eu esclareço: esta vista/voz vê-se e quer fazer-se:

adolescente: desejo de ser-rapaz. existem três coisas no mundo: raparigas, mulheres e rapazes. quer dizer, que estupidez, existe uma miríade de outros corpos e posicionamentos também; estou só a traçar os que aceito de entre os convencionais. apreensão adolescente: se eu um dia for um homem, vou ser o contrário de uma mulher; por outro lado, se eu por agora (ou para sempre) conseguir ser só um rapaz, então sim, se calhar sou o contrário de uma rapariga, mas acima de tudo sou certamente o contrário de um homem também. não que queira calar um privilégio, obscurecer a minha posição. mas se conseguir prender o meu desenvolvimento o suficiente para que o meu corpo desdobre para os lados e não em frente, melhor para mim e melhor para todas as envolvidas. preservam-se: raiva / excesso / ruído / indulgência / riso / excitação. “desenvolvimento”: sim, interroguemos grandes narrativas geopolíticas de evolução que organizam hierarquicamente corpos, cronologias e culturas; interroguemos também narrativas biopolíticas que organizam hierarquicamente os nossos corpos, as nossa cronologias, na nossa cultura. e ao querer um ser-rapaz não procuro colocar-me cúmplice de uma valorização de cultura inteira do jovem acima do velho; procuro falar mais particularmente que isso: procuro particularizar-me. não tenho problemas com envelhecer; só preferia morrer um rapaz-velho, e não um homem.

ango-depressiva: ciclos e circularidades: vistas fendidas; arritmias perceptivas; indulgências afectivas. inconsciência & insistências; b-a-bá de uma biopolítica/biopoética da bipolaridade. ver: poética.

bicha: uma certa crise-rapaz vivida desde muito cedo, até muito tarde e progressivamente cada vez mais profundamente. a avó põe-me o lenço na cabeça aos três (deixa de me tratar por “filha” aos vinte e três); demasiado chorona aos seis, aos sete, aos oito anos; unhas pintadas aos quinze e depois aos vinte e cinco e hoje em dia este ou aquele traço que denuncia; uma certa legibilidade do corpo. mais do que qualquer uma dessas coisas uma maneira de querer manipular o estar em detalhes que marquem tudo; que iluminem uma particularidade, que respeitem e respondam ao acidente do específico. detalhes simultaneamente mais infimamente íntimos e mais publicamente palpáveis. a diferença: ser-gay: é tender à desaparição: eis-me universal; eis-me igual. versus: ser-bicha: é tender à aparição: eis-me particular; eis-me diferente. pelo contrário, a única coisa mais estranha e supressiva do que ser tomado por “hetero” seria ser tomado por “gay”: neutralidade do desejo da indiferença. necessário, mas não aqui: este espaço é seguro; não é neutro. aqui os pronomes pulam e puxam como queiram. aqui às vezes as partes arranjam-se menino, menina, e coisas mais complicadas do que isso também. de resto, ver: feminista.

feminista: olá mãe, olá avó. “uma certa crise-rapaz vivida desde muito cedo.” aprendizagem da adolescência tardia: que a única coisa que me fazia sentido do corpo era uma teoria gerada por e para mulheres, antes e acima de qualquer comunidade material ou hipotética com rapazes (muito menos com homens, ughh, homens). ausência do papá com pê grande (pê de Papá, Picha, Poder) + encharcado no colo das gajas na minha vida + todos esses toques femininos articulados em puto a consolidarem-se noutra desdobragem ainda mais grave agora ao descobrir-me a querer rapazes = safar-me no feminismo e em mais lado nenhum; sentar-me no parque a pensar em género e pela primeira vez desde criança deixar-me dobrar uma perna apertada sobre a outra e eis placas tectónicas e oceanos em movimento e aceite o acidente de eu me estragar todo rapaz, que prenda. grato à minha matéria maternal-feminista. ver-me fazer de outro jeito qualquer. sei lá, e isso só começa a explicação nos termos mais egocêntricos: é claro que sou feminista. ver: queer.

luso-: território = crise. vagos surtos febris de abril à parte, bem-instalado um pessimismo crónico e colectivo; pergunta: o que é que significa dizer que algo está em crise se a crise é perpétua? oscilação molecular ou, histeria nacional a longo prazo ou, efeitos psico-simbólicos da pobreza, muito simplesmente? este país isolou tão firmemente o seu sentido do possível num projecto enquanto potência imperialista que assim que colapsou de volta à sua escala irreal enquanto canto do tamanho de um porto e uns quantos pastos na ponta dum continente inteiro, entrou numa depressão de tal ordem que nem sabe articular que parte do imaginário lhe dói. segue-se: imaginar cá dói e ser é improvável (tão improvável ser bicha quanto ser adolescente). ver: suburbana.

poética: crítica & criação: deixar cantar a superfície do texto ao ponto de cortar e complicar sentidos. às vezes explicamo-nos, às vezes expressamo-nos; às vezes paciência, às vezes potência. ver: ango-depressiva.

suburbana: uma certa aprendizagem do silêncio; uma nuance sobredesenvolvida (muito mal-vinda) no pior afecto: o aborrecimento (afecto adolescente). menos opressões do que supressões; menos violências fortes do que falhas na visibilidade do que quer que seja meu ou mais. sofisticação acrescida na relação com o nada & sensibilidade geográfica exacerbada. claridade dos espaços todos falarem os seus campos e coordenadas de identidade e inclinação. claridade também quanto à capacidade de um espaço não falar (ou seja, ser hetero: neste mundo, todo o falso-universal é hetero). desaceleração total. ver: luso-.

queer: afiliação especulativa com outro território; apanhar-me a aprender-me melhor noutra língua do que nesta; voltar à língua-mãe diariamente e sentir as várias dissonâncias de ter encontrado e protegido termo e trajectória noutro espaço imaginado mas não saber nem poder materializar uma língua na outra ou ambas numa síntese. eu escrevo “luso” e depois “queer” tudo seguido como que achando que se eu deixar as palavras colarem-se eu safo-me de pensar no amplo fôlego entre as duas que faz a fissura entre territórios inteiros, histórias inteiras; cala-te geografia, para que eu possa pensar. mas não, não me safo do facto da dupla-pertença ser crítica (quero dizer uma crise, mesmo) e não complementar. mas duma fissura fazem-se coisas bem boas. de resto, ver: bicha.

e por agora basta.

obrigado,

d.



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