6.4.15

sobre arquitectura, reprodução, desejo



"After Leonardo’s Vitruvius Man and Le Corbusier’s Modulor we shall have the Voilá! Man as the model of proportion! This man has the profile of Nijinsky with the indifferent look of an Egyptian Sphinx!" -- Luís Lázaro Matos 

 1. 
A oposição entre funcionalismo e esteticismo tem a sua política sexual própria. A articulação de um princípio mecanicista e realista de representação- seja ela artística ou científica - tem como premissa subjacente a possibilidade de uma produção ou reprodução mimética do real que produz do feito um novo efeito sem acrescento, sem fricção ontológica, visto que espelha sem estragar. Nisso, o funcionalismo é, desde sempre, heteronormativo: encaixa-se numa meta-estrutura simbólica da reprodução histórica enquanto processo biológico, material e semiótico em que corpos, estórias, eventos e efeitos se direccionam linearmente para uma via exclusiva, teleologicamente determinada: o futuro enquanto horizonte da prática (seja esta quotidiana, afectiva, criativa, etc). Um escritor realista e uma pessoa entregue à poética do recém-nascido partilham do mesmo princípio, manifestando-o em ordens diferentes: 1) é possível reproduzir a materialidade no texto e 2) é preciso reproduzir o presente no futuro; ambos têm como estrutura coordenadora o mito da reprodução. O funcionalismo (num sentido mais lato: o realismo, o cientificismo, o positivismo) e o futurismo (não o estético, atenção, mas o afectivo e político) são fantasmas do heteropatriarcado; só uma lógica falocrata tem tanto medo da fricção ontológica e do excesso sensual, só uma lógica heterocêntrica teme tanto um resíduo que exceda a função tida por "natural" e "óbvia" do corpo. 

2. 
Em "Chaos, territory, art" Elizabeth Grosz fala da arquitectura enquanto a primeira das artes: a constituição de espaços de protecção, produção e partilha de vivências constituirá o primeiro momento, a primeira condição, para o facto da arte; antes de todas as outras práticas materiais e simbólicas da arte se materializarem, o princípio arquitectónico surge implicitamente em todo o esforço de criar um território, por mais contingente e provisório que este seja. E em função do enquadramento que focaliza e faz o território definir-se, surge a primeira possibilidade de expressão: o enquadramento arquitectónico (que depois volta a surgir na forma do quadro ou do ecrã ou do refrão...) organiza os estados caóticos da Terra em blocos de sensação delimitados e desenhados que impactam o corpo. Mais: o que na natureza animal acelera e intensifica a produção de blocos de sensação será a selecção sexual; em excesso da selecção natural, a selecção sexual introduzirá na cena animal o surpreendente poder do desejo enquanto grau de arbitrariedade e contingência no campo da produção e reprodução de vida. E se o território arquitectónico se expressa enquanto materialização de um desejo criador, surgem então em articulação duas tendências produtivas animais: por um lado, um impulso territorializante que determina as condições de criação de blocos de sensação; por outro lado, um impulso desejante que cria as condições de apreciação de blocos de sensação. O impulso criativo coreografa-se em função de uma erótica do corpo, do espaço, da matéria e da sua expressão: assim, assim que surge na cena animal o desejo, surge como correlato a arte. 

3. 
O devir queer de um sujeito homossexual ocorre quando este traduz uma orientação existencial ("eu favoreço corpos do mesmo género") na rejeição de uma situação abstracta ("eu não pertenço a esta economia simbólica e reprodutiva"). É neste momento que se estabelece um horizonte teórico e político para a existência homossexual; dos impulsos sexuais e afectivos deriva-se uma máquina de abstracções e pulsações que opera sobre a tessitura de uma ordem socio-política quer no plano da socialidade, quer no plano do inconsciente. Esta não-pertença simbólica e reprodutiva não tem matrizes fixas e determinadas que possamos identificar de forma a-histórica e transversal, mas se lhe atribuirmos a sua própria coerência levantam-se problemas óbvios: não pertencendo a uma economia simbólica e reprodutiva, o corpo queer tenderá a ser aquele que perpetua as problemáticas dessa economia em vez de as resolver a favor da sua continuidade. Nesse sentido, o corpo queer dificilmente será funcionalista ou futurista: a sua existência sexual é determinada pela a-reprodutividade, não se podendo por isso introduzir passivamente em esquemáticas semióticas e materiais de continuidade histórica e biolótica, e assim que isto é posto em causa o próprio estabelecimento de um futuro diverge do estabelecimento do Futuro enquanto derivado da História, emergindo antes o modelo mais modesto de uma estória. Aqui surge o espaço de uma afirmação. 

4. 
Uma afirmação multifacetada e densa do desejo acima e além da reprodução, perturbando protocolos reprodutivos - de corpos e da História - a favor da autonomia substantiva da manifestação erótica, seja ela na forma do sexo (ou outros campos de desejo...), seja ela na forma da arte (ou outros campos de expressão). Uma arte queer não consistirá tanto na representação da homossexualidade enquanto "conteúdo" - não só porque tal representação ao nível do conteúdo não implica a extinção do impulso heteropatriarcal no plano da forma, mas também porque já vimos que temos motivos fortes para suspeitar de qualquer empreendimento de "representação" - mas na expressão de força de uma disrupção de economias historicamente determinadas e determinantes, uma disrupção que só acontece quanto o próprio sistema de representação entra em crise figurativa e, tal como se condensa e intensifica o desejo, se condensa e intensifica a forma também. Só aí emerge a autonomia de um erotismo que excede a heterofuncionalidade e o positivismo patriarcal; só pela forma se consegue o devir queer da expressão artística, para lá das estruturas coercivas conhecidas. 

5.
E é por essa afirmação entre outras coisas que eu gosto tanto do trabalho do Luís, e estou feliz por ser seu amigo. Espreitem o "Voilá! Architecture Manifesto" e vejam ainda o seu portfolio.

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